sexta-feira, 2 de novembro de 2007

A condição nostálgica

Madrugada do dia em que se comemora a memória dos finados. Preciso fazer duas coisas: estudar para o meu projeto de monografia e dormir. Não consigo nem uma coisa nem outra. Sono para mim é "artigo" de luxo. Nunca sou visitado por  Hipnos – verdadeiro deus do sono; Morfeu, seu filho, era deus dos sonhos - antes das 3 horas da madrugada. Isto, durante a semana, costuma deixar-me cansado, pois tenho que acordar às 8 horas da manhã para o trabalho. Parece tarde, mas levando-se em conta o período gasto para efetivamente dormir, devo ter algo em torno de 4 horas e meia de sono. Daí para menos.
 
Pouco demais para a rotina desgastante de trabalho nos turnos matutino e vespertino, e estudo no turno da noite. Sábado, domingo e feriados terminam por serem gastos com o sono na maior parte do tempo. Durante o dia e sempre após as 3, 4 da madrugada, claro.
 
Volto ao motivo deste escrito. Como não conseguia concentrar-me nas leituras do projeto e menos ainda dormir, fui até a cozinha. Com minha esposa dormindo na casa de sua mãe em fase de recuperação após uma cirurgia, meu "estado-zumbi" torna-se crítico. Abro a geladeira, tomo um pouco de água e ouço ao vento uma velha canção pop, de meus dias de criança e mesmo púbere.
 
De repente, percebo-me envolto por lembranças de 20 e poucos anos atrás. Recordo-me da era de pura inocência, seguida pela descoberta do desejo na puberdade. E de como me via  feliz, mesmo com muitas privações. Meu bairro, com infra-estrutura ainda precária – algo que contribuiu para a morte do manguezal próximo –, era um mundo mágico enquanto nele estava. Quando estava na escola, tinha receio em dizer onde morava. Afinal, era uma instituição privada, no Centro da capital, onde minha mãe obteve bolsa integral para minha formação elementar, até os 10 anos de idade.
 
O bairro onde resido, se no presente ainda é visto com certo preconceito, nos idos de 1980, era olhado como uma favela em seu estado mais primal, local de pobreza e violência. Atualmente olho pára trás e gostaria muito que a violência imperante retornasse aquele modus operandi. Por incrível que pareça, era praticada de forma menos banal, talvez este seja o termo. Refiro-me, obviamente, à malandragem existente por aqui naquele tempo. Afinal, os grupos de extermínio já agiam rigorosamente e sempre achando-se cumpridores de um dever para o qual o Estado não mostrava-se capaz, costumavam rondar nossas rua para aplicar um senso de justiça abjeto.
 
Porém, retorno às lembranças positivas causadas por aquela canção. Uma das minhas diversões diletas era ir à casa de minha avó, umas dezenas de metros distantes de minha residência, e divertir-me com os amigos no beco que ainda existe por lá. A bem da verdade era um beco tanto quanto largo. Jogávamos futebol tranquilamente. Fazíamos circuitos para disputas com chapinhas de refrigerantes, com os mais variados obstáculos a serem transpostos, sem precisar obstruir a passagem dos moradores. Divertíamos com os parcos bonecos da série Comandos em Ação, presentes luxuosos, dada as dificuldades de nossas mães e pais à época. Em noites de quaresmas, aprontávamos trotes, inspirados pelos contos de horror do mais velhos – lobisomens, mulas-sem-cabeça, entre outras criaturas fantásticas.
 
Mesmo com toda a simplicidade daqueles dias, não há como negar os momentos saudosos. Os dias de chuva dentro de barracos impávidos, fortalecidos uns nos outros. As deliciosas histórias de minha amada bisavó, mulher negra, pobre e guerreira, que mesmo perdendo a visão por causa do glaucoma, nunca perdeu a magia que emana da simplicidade e seus hábitos do interior de Minas Gerais, de onde veio também minha mãe.
 
Sim eram dias difíceis, mas não tristes. Aprendi muito com o passar do tempo como não baixar a cabeça por causa de minhas origens. Hoje, não sinto constrangimento algum em dizer de onde venho, onde vivo. Santa Rita, o bairro onde moro, é um lugar de pessoas alegres e sempre dispostas a encarar o mundo, apesar de todo desencanto de nossa sociedade.
Infelizmente, a violência ainda se faz presente em variadas matizes. Uma briga que antes era resolvida com uma boa troca de sopapos, quando muito uma ripa de nossas antigas cercas nas costas do oponente, sem grandes traumas, agora tem em sua equação chumbo, independente do horário. E assim vamos tornando-nos "civilizados".
 
Interessa mesmo é que aquela canção me fez voltar às minhas raízes por alguns instantes. E me lembrei de um dito popular que diz: dessa vida você só leva a vida que leva. Por isso vivo, faço, fuço e forço, como cantou Raul.
 
A propósito: a tal canção era "Olhar 43", do RPM, que embalava as matinês das tardes de domingo, freqüentadas por mim e os amigos aos 10, 11 anos de idade. Nossa "boate" chamava-se "Voyage Disco Clube" e estava localizada à entrada do saudoso beco onde reside até hoje meus avós, meus amigos de infância e parte de minha vida. Bem viva.

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